domingo, 13 de julho de 2014

O suave tom da ilusão

Inspirado no conto O dorso do livro, de Paulo de Tarso Vasconcelos Chaves

            Desde o dia em que ela decidiu partir minha vida tornou-se um martírio, acordava um dia em cada lugar tentando achar uma explicação que fosse ao menos razoável para o seu ato. Para os outros e para mim éramos o casal mais feliz que se podia imaginar. Estávamos juntos em todos os momentos, nos beijávamos como jovens namorados, eram brincadeiras e risos e até nossas brigas pareciam momentos de descontração. Tudo tinha um doce toque de eternidade.
            Lembro-me do dia em que tudo acabou, comemoraríamos o 16º aniversário da primeira vez que nos vimos. Na data sempre íamos ao mesmo local e reforçávamos nossos votos de amor. Naquele dia Ana estava particularmente bonita, com um vestido vermelho, salto alto, os cabelos negros presos em uma longa trança, a maquiagem leve e um batom da mesma cor do vestido que resaltava seus lindos lábios. Estávamos bem, contudo reparei que ela acendeu um cigarro nervosamente enquanto caminhávamos até o bar onde nos vimos pela primeira vez. Ela suspirava fortemente e relembrava o que sentiu ao me ver, as conclusões que tirara quando começamos a conversar e descrevia divertidamente meu jeito tímido ao convidá-la para assistir à sessão das 21 horas no cinema. Um choro leve e magoado caia sobre sua face quando passamos pela rua XV de Novembro, ela dizia que tudo havia sido muito bonito, mas que lamentava fazermos isso pela última vez, que estávamos nos despedindo de nossa vida juntos e passando por aquela rua, aquele poste e aquela calçada em um momento derradeiro.
            Fiquei sem entender sua atitude, tentei agarrar-lhe a face para sentir um tom de brincadeira, mas seus olhos não tinham brilho, nem medo, nem indecisão, apenas uma loucura que lhe brotava das palavras, que saltou em minha boca e ardeu-me em um beijo insano. Quando desprendido do beijo só pude perceber sua movimentação doentia em direção ao ônibus que rodava pela rua em velocidade suficientemente forte a ponto de não conseguir frear e ceifar a vida da mulher que amei desde o primeiro instante.
            Ela não tirou somente a própria vida, mas a minha também. Comecei a viver como um orate à procura de respostas em todos os caminhos. A única força que me movia era a de entender os motivos que levaram Ana a cometer tal ato. Refiz todos os seus passos, passei a ser lembrança e sua imagem aparecia em todos os cantos. A bebida ajudava a entorpecer meu ser e a vê-la cada vez mais perto. Seu vestido estava em todas as vitrines, seus negros cabelos trançados estavam em todos os lugares, seu olhar imprudente dançava em todas as esquinas e seu perfume era o ar da primavera. Sempre ia ao bar em que nos vimos pela primeira vez e Seu Rogério, o dono do estabelecimento, embebido em minha tragédia dava-me os drinques necessários para que eu pudesse ao menos desmaiar e esquecê-la por algumas horas.
            Quando adentrei ao estabelecimento naquele início de noite, vi-a em uma mesa de canto olhando os transeuntes distraídos na calçada. Meu coração deu um disparo, seu cabelo estava como naquela noite e seus olhos tinham perdido o quê de loucura da última vez, estavam serenos, límpidos como quando nos apaixonamos. Minha primeira atitude foi pedir para sentar à mesa, ela olhou assustada para meu rosto, mas amável aceitou o pedido. Perguntou se eu queria beber alguma coisa, eu disse que aceitaria o mesmo que ela. Seu Rogério veio atender nosso pedido com um sorriso de satisfação no rosto e ao sair com o seu bloquinho deu-me uma discreta piscadela.
            Enquanto tomávamos cerveja conversamos sobre a instabilidade daquela primavera, as eleições do ano seguinte, filmes novos e antigos, sobre literatura – de Baudelaire a Paulo Coelho. Aquela Ana de olhar sereno mostrava-se alegre com o passar dos minutos, uma certa alegria que não combinava com a antiga, umas formas que não se misturavam com as da mulher com a qual convivi durante 16 anos. Pensei que talvez fosse a morte que lhe tivesse dado um ar moleque e atrevido. Enquanto seu sorriso aparecia de tempos em tempos, questionava-me se aquele momento era um sonho ou meu maior estágio de embriaguez. Enquanto ela falava sobre os gols da última rodada peguei-lhe o queixo violentamente e forcei-lhe um beijo, mas o gosto de Ana não era o mesmo, ela assustou-se, levantou-se e saiu apressada, quando chegou ao balcão pediu rapidamente a conta. Eu estava certo de que não a perderia mais uma vez, que não veria minha mulher sair correndo de minha vida como fizera outrora. Nesse instante meu pensamento se desfez e só pude sentir que minha mão tocava o punhal que trazia na jaqueta encostando levemente nas costas suaves e macias de minha Ana várias vezes. Minha dor desfez-se em força e a cada golpe que dava o gosto amargo da perda se desfazia em sangue no balcão daquele bar. Quando a fúria saiu de meu rosto e deitado ao lado do corpo ensanguentado percebi em desespero que as feições de Ana dissolviam-se daquele corpo já sem vida e que da cor carmim brotava o rosto e o corpo de uma outra mulher. Todos no bar me olhavam aturdidos, ouvi o barulho de sirenes, saí correndo o mais rápido que pude e senti naquele momento a certeza de que Ana havia finalmente sumido da minha ilusão.  


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